Enquanto um garoto, a um centro da capital onde se situa o palácio presidencial, esperava apreensivo receber seu plástico de água (ela é distribuída em sacos plásticos) de dois soldados com seus cascos azuis, anunciando-se “milícias da paz” da ONU, do outro lado da cidade, nos bairros pobres da capital, incluindo o mais pobre deles, o Cité Soleil, crianças levantavam suas mãos para o alto em sinal de estupor: a polícia haitiana, cúmplice dos planos oriundos de cada dólar dentre os milhões que Washington envia e que estão estacionados na fronteira do país, abriu fogo contra a população pobre.
Centenas de policiais, carregando coletes amarelo-luminescente e máscaras contra a poeira residual da destruição de dias atrás, assaltaram as ruas em corrida, perseguindo aquilo que daqui em diante ficará conhecido nos meios burgueses oficiais como os “saqueadores de Porto Príncipe”, e que em realidade se conhece como os haitianos compreendendo suas necessidades comuns, e lutando para se apropriar dos artigos de consumo já existentes nas lojas da capital.
Oficiais de polícia armados com poderosas escopetas, cobrindo uns aos outros, alvejavam selvagemente os prédios em que os “saqueadores” alegadamente se ocultavam; nas ruas esburacadas, camionetes da polícia local, tripuladas por três e quatro recrutas, saltavam e atiravam à queima-roupa os transeuntes desses bairros, gritando para se afastarem das mercearias e supermercados, já insuficientes de per si, mas com a espírito de que “deve-se cortar a tendência pela raiz”. Os residentes que se agrupavam nas calçadas, alguns em suas frágeis barracas, eram obrigados a levantar os braços e sair ao caminho das guardas em movimento frenético para, antes de perseguir seus alegados alvos, assustar e paralisar aqueles que assistiam a elas.
Os resultados são sangrentos: dois homens foram baleados na cabeça e deixados para morrer na praça principal em Delmas, aos olhos dos passantes; em Pétionville, um homem foi queimado por um “grupo” que afirmara que se tratava de um “saqueador”. Por ocasião do pavor instaurado pela gendarmeria na capital, alguns contingentes residentes de Porto Príncipe começaram a deixar a capital em busca de cidades circunvizinhas.
Enquanto isso, o lugar-tenente geral P. K. Keen, deputado comandante do Comando Sulista dos Estados Unidos, que está supervisionando a assistência militar, disse que “tiveram um bom dia ontem”, referindo-se ao seu exame da presença de 1,000 agentes militares em ação na capital e os adicionais 3,000 que esperam adentrar o país, aguardando sobre navios cargueiros na costa. Defendeu que os soldados americanos estão “balanceando da melhor maneira possível suas tarefas de segurança e a urgência na entrega rápida de suprimentos”. É preciso iluminar o centro da posição desse senhor, e
“Desde que tu não te podes enxergar a ti mesmo,
Tão bem como por reflexo, eu, teu espelho,
Descobrirei modestamente a ti,
Aquilo de ti que tu ainda não sabes”
O contingente armado dos EUA no Haiti atingirá, até segunda-feira, a cifra de 10,000 soldados; a isso soma-se as diversas repartições latino-americanas do “Ministério das colônias” representado pela MINUSTAH, capitaneado pelo bárbaro exército brasileiro de Lula e de Nelson Jobim – que já determinaram enviar balas de borracha para o país avassalado pelo terremoto sísmico e pelo terremoto colonialista. Essa coalizão, fachada da política do imperialismo norte-americano, aumentará necessariamente a resistência armada do povo haitiano, o qual continuará a explorar, depois como antes – como mostra por seus modos recentes – de maneira mais intensificada. Esta resistência, por sua vez, encontrará a reação mais feroz por parte dos EUA, que tentará suprimi-la sob as mais diversas roupagens – como no caso de hoje, em que a polícia haitiana deu provas de seu servilismo incondicional às designações da política de “segurança” do Pentágono – e se revelará mais claramente ainda como o gendarme central da exploração imperialista estrangeira e como o escorador das ditaduras nativas. Deste modo, Washington-Wall Street segue sendo o amo predominante e agressivo da América do Sul e do Caribe, pronto para defender esta posição por meio das armas contra todo assalto sério de seus rivais imperialistas ou todo rechaço sério pelos oprimidos colonizados da América Latina para se libertar da dominação de seu explorador.
Com a restrição opressora à auto-defesa e auto-determinação do povo haitiano em resgate de sua próprias forças, estabelecendo a exclusividade dos esforços de ajuda humanitária ao órgão da ONU, ajuda tão ambígua e feita a meia-medida, a intervenção imperialista do salvacionismo norte-americano não elimina nem modera o sofrimento da população de Porto Príncipe: pelo contrário, na afirmação de sua autoridade, agrava os conflitos dos haitianos entre si e suas atribulações. A reivindicação “pacifista” vem acompanhada de massiva inversão de capitais nas divisões de defesa da “segurança pública”; leia-se: da segurança pública do capital de Wall Street.
Os carrascos do filisteísmo jornalístico da agência Reuters, Joseph Guyler Delva e Tom Brown, anunciaram que a pacificação do bairro Cité Soleil foi “uma das maiores vitórias do presidente René Préval desde que assumiu o cargo em 2006” (Dom, 17/1). Como se não bastasse, esparramam seu conteúdo: “Os líderes das gangues de Cité Soleil são criminosos perigosos, que servem de inspiração para lendas urbanas e populares músicas rap haitianas”. Entrevistando dois policiais haitianos cobrindo a área da favela, são informados que gangues sangrentas famosas voltaram a marcar presença no seu antigo bastião, aproveitando a situação para pilhar os habitantes. Não é acidental que os dois contistas pediram para não serem identificados, por não serem autorizados a falar sobre a volátil situação em Cité Soleil. As bandas “pacificadoras” armadas, sob direção da ONU, são as maiores responsáveis pelos índices de pobreza da região, e os verdadeiros agravantes entre conflitos intestinos em meio da população pobre, desesperada pela aguda escassez de suprimentos.
O comandante da polícia nacional do Haiti, Mario Andresol, mostrando como o costume nutre o hábito no homem, disse dos alegados “criminosos” que fugiram da penitenciária: “Minha mensagem a todos esses bandidos armados que estão se aproveitar da situação é que vamos prendê-los como fizemos antes; estamos trabalhando para tomar as medidas apropriadas para combater esses criminosos", acrescentou.
Por sua vez, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, continuou a salmodiar seus versos favoritos na frente de uma multidão de haitianos: “A ajuda está a caminho”. Nunca se ouviu produto tão alto da voz, por parte de um coração tão vazio: mas o ditado é correto, 'o navio vazio racha com o maior estalido'.
A situação real da incapacidade do influxo de suprimentos é patente: o aeroporto de Porto Príncipe está saturado de aviões internacionais e o governo haitiano oficialmente parou de receber vôos desde quinta-feira, pois a maioria dos aviões estacionados na rampa de acesso abarrotaram a via de pouso. Como a torre de controle caiu durante o terremoto, é muito difícil que os aviões se coordenem a si mesmos. Resultado: a ajuda internacional, em grande parte, foi abortada por enquanto, a não ser pela participação de helicópteros de resgate. Os EUA afirmaram que enquanto essa situação não estiver resolvida, não enviarão mais vôos para lá. Desde sexta-feira os suprimentos muito necessários estão presos em aviões, navios cargueiros e demais containeres, sem chegar ao centro da cidade. Os poucos insumos que alcançam a capital, são pobremente distribuídos e armazenados nos galpões da ONU, os quais são cercados frequentemente por moradores indignados com a delonga da ajuda.
Além: alguma ordem, não se publicou de quem, obrigou vários médicos, no sábado à noite, a deixarem de atender os pacientes nas tendas e "procurar um local seguro". Pior: os médicos têm de levar consigo os suprimentos hospitalares, enquanto os pacientes ficam à mercê das intempéries, esperando a noite toda por triagem e exame. É uma situação revoltante.
Assim, a amplitude dos problemas do imperialismo norte-americano, o alcance mundial de seus interesses e dos fundamentos de seu poderio ditam-lhe uma política de expansão sem trégua, mesmo durante as catástrofes naturais. Constitui o freio mais sólido sobre o movimento de libertação das colônias e semi-colônias. A luta dos trabalhadores haitianos por seu próprio reerguimento deve preservar sua total independência organizativa e política frente aos governos demagogos incapazes de entender as necessidades da população atingida pelo terremoto, reservando-se e exercendo o direito de organizar o povo haitiano num esforço uníssono para a real ajuda humanitária de seus conterrâneos. Nesse processo, deve-se contrapor o afluxo das forças militares que operam como instrumento da opressão imperialista, de forma diplomática ou econômica, destinadas a violar a independência nacional do país e impedir-lhe alcançá-la.
Nossa campanha a partir do Centro Acadêmico de Ciências Humanas da Unicamp permanece ofensiva no sentido do combate para que os haitianos tenham acesso e controle dos artigos de consumo já presentes no país, na forma de propriedade privada de comerciantes e merceeiros, e donos de supermercado. Rechaçamos veementemente as calúnias sobre pilhagens e saques pelos senhores empedernidos da pirataria internacional. A auto-ajuda tem de ser elemento da ajuda geral fornecida por equipamentos hospitalares, engenheiros, corpos de bombeiros, equipes de resgate e hospitais móveis. O oficialismo que isola os esforços da população deve ser denunciado.
Uma situação preocupante para o sofrido povo haitiano é veiculada hoje (domingo, 17/1). O Haiti é residência de aproximadamente 380,000 órfãos, de acordo com a Fundação da Criança das Nações Unidas, e esse número aumentará com a atualização mais exata dos dados após o terremoto de terça-feira. Ao redor de 300 crianças, entre órfãos e desamparados, serão expedidos para fora do país em programas de adoção pelos EUA e pela Holanda, esforços coordenados que eventualmente trarão as crianças de volta ao país quando a situação se abrandar. Por mais alentador que possa ser a retirada dessas crianças do Haiti durante essa situação terrível para a população, não é impossível que o giro para retirar as crianças de lá pode representar o sinal verde para a repressão mais sólida aos trabalhadores adultos haitianos por parte da combinação das milícias internacionais.
Nós, do CACH da Unicamp, reiteramos a exigência da retirada imediata e incondicional das tropas da MINUSTAH do Haiti, e que o dinheiro utilizado para a manutenção das tropas da ONU (US$ 600 milhões) seja revertido em ajuda financeira direta ao país, sob controle das organizações de trabalhadores e do povo haitiano. Exigimos o fim imediato ao envio de brigadas militares adicionais e o cancelamento da dívida externa haitiana para com todas as potências imperialistas! Nenhuma repressão policial ao povo pobre e aos trabalhadores de Cité Soleil e da capital Porto Príncipe!
Exigimos a quebra do silêncio por parte da academia e dos docentes da Unicamp, e que o reitor Fernando Costa envie a ajuda médico-hospitalar necessária ao país que ajudou a inundar de tropas.
André, estudante de Ciências Sociais da Unicamp.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
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Apesar de ter sentido certo incomodo com a possivel veracidade de suas acusações os fatos que pretende expor e as ideias que defende sobre o que deveria ser feito carecem de seriedade e inteligencia social. Acha mesmo que deveriamos enviar milhões de dolares e toneladas de alimentos a um pais totalmente desestruturado e a agora devastado em consideravel parte e dizer a esse povo desesperado: "façam como acharem melhor"?
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