segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A vilania do jornalismo semi-colonial

Por André Augusto

A natureza lacaia dos jornalistas brasileiros encontra seu estado ideal superado quando encontram esperança em sua importância internacional. Embora a estupidez dos âncoras televisivos mais conhecidos e os editores chefes das revistas mais filistéias seja notória, espere-se enxergar as pulgas que trabalham como correspondentes internacionais para reconhecer que o governo brasileiro não suga o sangue dos haitianos apenas pela baioneta de seus “gloriosos” esbirros.

Se o Imperador romano Vespasiano, após cheirar uma moeda recolhida nos coletores dos mictórios públicos, pôde afirmar: “Non olet” (não tem cheiro), revelando que uma peça de ouro vale a mesma coisa independentemente de sair da amônia ou da fonte mineral mais pura, as palavras do venerável enviado da Folha de São Paulo ao Haiti, senhor Fábio Zanini, por outro lado, trazem marcadas em caracteres garrafais: “Olet!” (fede!), e revela de maneira refrescante que uma frase reacionária de um servo é diferente daquela de um tirano, pois homenageia o serviço que seus farrapos mentais prestam à grandeza do senhor.

O recruta delegado do jornal paulista, entusiasmado por estar acompanhando in locu os repentes da pirataria internacional, encheu a boca para defender com fúria ufanista a presença brasileira no Haiti, justamente em cima das manifestações do povo haitiano contra a permanência das tropas da ONU (capitaneadas pelos auriverdes) no país.


“Acuada e radicalizada, uma franja da sociedade haitiana aproveita o caos pós-terremoto para aumentar o volume de uma demanda que completa seis anos: brasileiros, voltem para casa!” (Folha Online, 31/1)


Original apenas na banalidade, o senhor Zanini usa o argumento que completa agora 188 anos no Brasil: o rechaço a liderança de tropas brasileiras é “realizado por uma minoria inexpressiva e anarco-radicalista que desconhece a importância de se reforçar a lei e a ordem”. A mesma voz federal que parece ecoar do túmulo de José Bonifácio encontra ressonância nas mãos cadavéricas do senhor Zanini.

Mas quem são esses elementos depravados, margem de uma pequena porção, que não reconhecem heróis porque eles mesmos não os são? Zanini afirma que são simpatizantes do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, seqüestrado e deposto pelos Estados Unidos depois de se mostrar antiquado para os interesses norte-americanos na região; e faz questão de frisar onde essa mínima bacia de “radicalizados” se encontra, e o que fazem nesses lugares:


“Vivem em bairros miseráveis de Porto Príncipe, como Cité Soleil e Bel Air, onde Aristide aparece em grafites nos muros ao lado de Bob Marley e Martin Luther King. 'Aristide construiu tudo por aqui, e os brasileiros destruíram', disse um homem que se identificou apenas como Jean, tomando cerveja e fumando maconha às 10h numa rua em ruínas em Bel Air”.


Qual precisão! Sem ela, que seria daqueles que, fora do sofrimento – fruto das perseguições, calúnias e assassinatos – aconselham e incitam facilmente o sofredor? Reconhecemos o erro de expressar a opinião de que o sr. Encarregado não sabia onde se situa e o que faz a camada de “acuados”. O único problema é que Herr Zanini provocativamente desacredita os autores das demandas para a retirada de sua milícia intervencionista aos olhos dos brasileiros que têm o prazer de o ler. E qual não é sua preocupação ao cogitar, nas grutas de seu cérebro liberal, os perigos que a “minoria insubmissa e despeitada” pode fazer surgir para os interesses cantonais de seu orgulho patriótico!


“Mas a franja radicalizada existe e é atuante, não apenas nas favelas, mas também no movimento estudantil. O pior cenário para o Brasil seria o de uma aliança entre as massas empobrecidas das favelas e essa elite politizada”


Esse pequeno patriarca jornalístico, criado no âmbito das velhas legislações mais tradicionais de clãs pastorais, embica sua peregrinação pelos bairros pobres do Haiti em busca de aplausos e polegares para o seu exército santo. Após muitos anos, alguns passos e poucos “sujeitos oriundos de minorias acuadas”, Fábio Zanini não tem dúvidas em garantir a seus compatriotas:


“Ao longo de dez dias em Porto Príncipe, a Folha percebeu bem mais demonstrações de apreço aos brasileiros entre a população do que o contrário.”


Enfim, Zanini projeta no povo heróico haitiano, maior responsável pelo salvamento de seus conterrâneos abalados pelo terremoto, um servilismo que é só seu, uma covardia que só pode ecoar nas bocas em que retumba a aprovação das brigadas de ocupação imperialistas. Demonstra em pequena escala – como em pequena escala se fez tudo o que escreveu até agora sobre o Haiti – o elitismo e o cinismo mais sujo tão correntes na imprensa brasileira, capaz de se “arrastar até a Patagônia por dez rublos”. Esse estado de consciência subserviente envergonharia um servo medieval. A adoração da violência pela cretinice ideológica do jornalismo brasileiro não conhece a vergonha nem a moderação. Não protegem com suas penas a fronteira norte-americana da ameaça do narcotráfico; são o tapete triunfal que serve de fronteira para a marcha das botas imperialistas.

E que faz a ONU desde que instalou-se no coração dos haitianos? Em julho de 2005 as tropas da ONU dispararam contra a comunidade de Cité Soleil, causando um efeito devastador no bairro mais pobre de Porto Príncipe (com 22.000 cápsulas de projéteis espalhadas no local), e mais tarde impedindo a entrada da Cruz Vermelha para socorro dos feridos, em flagrante violação das normas internacionais mais elementares. A 22 de dezembro de 2006, também em Cité Soleil, forças da ONU atacaram a população que se mobilizava, disparando de helicópteros contra civis desarmados: sempre a uma distância respeitável, já que corpo a corpo os haitianos são muito cruéis. Dois exemplos do trabalho heróico cumprido pelas tropas da MINUSTAH, que foram acusadas, junto à polícia local haitiana, de cometer execuções sumárias e encarceramentos arbitrários.

Em 2006, 63% das acusações contra as forças multinacionais dos cascos azuis da ONU estavam relacionadas com delitos sexuais, abusos e violações, sendo que um terço delas se referia a crimes de prostituição. Casos de meninas, meninos e mulheres prostituídos, violados e abusados pela MINUSTAH em troca de alimentos, dinheiro e abrigos são recorrentes, mesmo antes da trágica situação em que viviam os haitianos antes do terremoto; certamente se tornaram ainda mais graves depois do abalo, já se veiculando notícias sobre dez norte-americanos presos e acusados de tráfico de 33 crianças a caminho da República Dominicana. Que abalo a mídia burguesa não sentira em sua cadeira de edição, logo quando montava sobre os dados das “gangues haitianas” que traficam crianças e órgãos humanos para o exterior...

Como sucede com a Igreja, com os exércitos de todo o mundo, entre os círculos de altos funcionários, de magistrados e de políticos que gozam da maior impunidade, todos os acusados que pertencem aos cascos azuis ou a “missões de paz” da ONU são repatriados em seus países de origem, onde gozam de um retiro silencioso e sem juízo. Mas a Folha, que esteve no Haiti nos últimos dez anos, percebeu “bem mais demonstrações de apreço aos brasileiros do que o contrário”, e fecha com a nota:


“O Brasil lidera militarmente a Minustah, a força de paz da ONU, que em geral é bem aceita pelos haitianos.”


Estar dez anos no Haiti não significa nada quando se passa dez anos de olhos fechados. Suas reportagens não deixaram na superfície do Brasil nenhum prodígio, nenhum gigante revolucionário, mas apenas criaturas tradicionais, uma moita espessa de figuras burguesas que crêem no fundo de seus bolsos que escombros podem ser removidos com fuzis e abrigos podem ser construídos com balas de borracha, como crê piedosamente o governo de Lula. Esse cinismo inaudito e repulsivo sanciona o fato de que meninas, meninos e mulheres violados, abusados, golpeados e reprimidos sigam vivendo em suas pobres terras dizimadas e espoliadas pelo imperialismo e pelas guerras destrutivas que impõem as classes dirigentes internacionais. E devem sobreviver sob as piores condições, trazendo em seus corpos os traços indeléveis de crimes de lesa humanidade.

Quando o povo pobre e trabalhador haitiano conseguir encaixar seus golpes decisivos nas forças invasoras da pilhagem internacional, e esses senhores da imprensa "do povo" tentarem uma cambalhota para ficar ao se lado, retendo esse mesmo povo e preparando a recuperação da milícia da "comunidade mundial" para o próximo ataque, a população gritará "Trop tard!" e colocará um fim rápido a todo o monopólio da informação por parte daqueles que afligem e respondem em nome dos aflitos.

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